De Povos Indígenas no Brasil

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Contra os índios, mais uma vez

20/09/2012

Autor: MARÉS FILHO, Carlos Frederico; VALLE, Raul Silva Telles do

Fonte: CB, Opinião, p. 17



Documentos anexos


Contra os índios, mais uma vez

Carlos Frederico Marés Filho
advogado, procurador do Estado do Paraná, professor de direito Socioambiental da PUC/PR

Raul Silva Telles do Valle
advogado, coordenador do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental

Alguns atos da administração pública são de duvidosa origem e obscuros propósitos, que muitas vezes só virão à tona depois dos danos causados. Esse é o caso da polêmica Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que pretende transformar em regra, aplicável a todas as terras indígenas do país, pontos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do caso da demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.
Ao subscrevê-la, o advogado geral da União, Luis Inácio Adams, cometeu três graves erros. O primeiro deles, e o mais grosseiro, é pensar que as condicionantes estabelecidas para aquele caso podem ser compreendidas como regras, aplicáveis automaticamente a outros casos. Seria ferir um dos mais basilares princípios do direito: o de que a decisão de um caso só se aplica às partes que dele participaram, não afetando terceiros.
No caso Raposa/Serra do Sol, o STF decidiu, como não poderia deixar de decidir, que estava correta a demarcação da terra em forma contínua. No entanto, alguns ministros, influenciados pela retórica nacionalista, e por ser aquela uma área de fronteira, passaram a emitir em votos "condições à demarcação, na suposição - equivocada - de que quanto mais amplos fossem os direitos reconhecidos, menor seria a soberania do Estado brasileiro sobre a área.
Foram 19 as condições estabelecidas pelo STF, sendo as principais: a) não ampliar a terra indígena; b) liberar o ingresso das Forças Armadas e da Polícia Federal na área, independentemente de causa ou motivo; c) permitir a construção de obras consideradas "estratégicas" pelo Conselho de Defesa Nacional sem a necessidade sequer de consulta aos donos da terra; d) transferir a gestão de partes do território (as que coincidem com unidades de conservação) para o Instituto Chico Mendes.
Ocorre que muitas dessas condições, por incrível que pareça, contrariam tratados internacionais assinados pelo país e o próprio texto constitucional. É o caso da construção de obras sem consulta ou da proibição de ampliação. Cientes disso, vários dos ministros emitiram os votos favoráveis à demarcação, mas apontando ressalvas com relação às condições. Não por acaso, embora a terra já tenha sido definitivamente demarcada, o processo judicial continua em curso, pois diversos pedidos de esclarecimento em relação às condições foram apresentados pelas partes, inclusive as comunidades indígenas.
Apesar do absurdo de o STF haver imposto, de moto próprio, "condicionantes" que restringem direitos constitucionalmente assegurados, está mais do que claro que a decisão se referia apenas àquele caso concreto, não podendo ser estendida a outros casos e contextos. O próprio STF já disse isso, mais de uma vez. Por exemplo no caso dos pataxó hã hã hãe, do sul da Bahia, no qual reconheceu o direito de ampliação da terra sem fazer menção às condicionantes.
O segundo erro foi o advogado geral não ter motivado seu ato. Para assinar embaixo de uma medida tão forte e interventora como essa, ele deveria indicar o interesse público que pretende proteger. Que interesse público há em permitir que uma estrada corte uma terra indígena sem que eles tenham o direito de se manifestar? Ou de receber indenização pelos prejuízos decorrentes da obra, como deixa entender a portaria? Nenhuma resposta coerente veio a público até o momento.
O terceiro erro foi jogar na clandestinidade os advogados públicos que diligentemente vêm defendendo, judicial ou extrajudicialmente, o direito dos povos indígenas a suas terras. São milhares de pareceres jurídicos, recursos judiciais, orientações técnicas, entre tantos outros atos emitidos nos últimos anos que, de uma hora para outra, passarão a estar contrários ao posicionamento oficial do órgão em que trabalham, numa guinada radical de entendimento poucas vezes vista no âmbito da advocacia pública.
Diante da natural reação dos povos indígenas e de setores do próprio governo, a portaria foi suspensa. Primeiro por dois meses, depois por prazo indeterminado. É pouco. Tem que ser revogada. Qualquer medida equivalente só fará sentido quando o STF se pronunciar, de maneira definitiva, sobre o alcance das condicionantes que impôs aos índios da Raposa. Antes disso é, claramente, advogar contra os mais de 230 povos indígenas do país.

Correio Braziliense, 20/09/2012, Opinião, p. 17.
 

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