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Servidores do Ibama estão do lado certo

24/02/2025

Autor: SANTANA, Edvaldo

Fonte: Valor Econômico - https://valor.globo.com/



Servidores do Ibama estão do lado certo
O gás natural, relevante para descarbonizar a indústria, freará a transição energética, e não o contrário. É falso o argumento de que o dinheiro do gás será usado para a transição

Edvaldo Santana
Doutor em engenharia de produção e ex-diretor da Aneel

24/02/2025

Na mitologia grega, Teseu, que derrotou Minotauro, é figura importante. No enigma de Plutarco, Teseu teria feito uma viagem de 50 anos e, com o tempo, substituía as peças do seu barco de madeira. No fim da viagem, todas as peças tinham sido trocadas. O barco que chegou ao destino seria o original ou já era uma nova embarcação? E se as peças velhas foram utilizadas num novo barco, qual seria o navio de Teseu, o antigo, com as peças novas, ou o novo, com as peças antigas?

Pensei nesse paradoxo quando escutei a lenga-lenga da Margem Equatorial, que, entre 2005 e 2007, foi a lenga-lenga das usinas dos rios Madeira e Xingu. O governo, bem-intencionado, não desistirá de suas pretensões, mas errará novamente.

Entre 2004 e 2007, participei das discussões acerca da construção das hidrelétricas (UHEs) do rio Madeira (Santo Antônio e Jirau) e do rio Xingu (Belo Monte). Fui relator do leilão de uma delas. Nos debates, sempre na Aneel, no Ibama, no Ministério do Meio Ambiente (MMA) e no de Minas e Energia, tinha um lado, que, com sólidos conhecimentos técnicos e econômicos, defendia a construção das usinas. Eu estava desse lado. E não me orgulho disso.

Do outro lado, também com sólidos argumentos técnicos e ambientais, estavam os técnicos do Ibama e do MMA. Passados dois anos, com os órgãos do meio ambiente abusivamente pressionados, venceu o setor elétrico. As usinas foram construídas. A pergunta é: se fosse hoje, seriam novamente autorizadas?

A concepção de tais UHEs foi muito equivocada. Pelo menos uma delas passará quase todo o período de 30 anos de concessão, e mais que tenha, a angariar pífios resultados financeiros, mesmo com os sucessivos "jeitinhos" de transferir riscos para o consumidor.

São usinas que, por serem de baixa queda e sem reservatório, produzem pouca energia. Itaipu, também sem reservatório, tem 14 GW de potência instalada e, ao longo do ano, transforma em energia o equivalente a 65% dessa potência. Belo Monte, com 11,2 GW, só gera, em média, 4 GW, o correspondente a 36% da potência instalada. É uma usina com fator de eficiência maior que o de uma fotovoltaica (o menor entre todos as fontes de geração), mas é bem inferior ao de uma eólica do Nordeste. Assim, do ponto de vista energético, Belo Monte beira a um desastre conceitual.

O detalhe é que na fase do estudo de viabilidade já era possível desconfiar desses resultados. Mas, na pressão para construí-la a qualquer custo, pois era uma obra do PAC, foram desdenhados os princípios da minimização do máximo arrependimento, aplicável a projetos rodeados de incertezas.

Os técnicos do Ibama, mesmo pressionados por conta das licenças ambientais, estavam certos. Se era uma UHE tão grande, que produziria muito pouca energia, era prudente não construí-la. Era relevante a probabilidade de arrependimento, dado que os benefícios não superariam os custos. E não superaram.

O quadro se repete agora com a pendenga da pesquisa e posterior exploração da Margem Equatorial. Novamente os servidores do Ibama são acossados. É claro que, do ponto de vista empresarial, é quase nula a probabilidade de o negócio não ser bem-sucedido. No campo político, os argumentos, bem razoáveis, são que não devemos abrir mão do status de autossuficientes e que os royalties trarão riqueza.

Não é bem assim. A China produz apenas 1/3 do gás e menos da metade do óleo que utiliza, mas já é a segunda economia do planeta. A Coreia do Sul, que não produz gás, é um país dos mais desenvolvidos. No outro extremo estão a Nigéria, nono maior produtor de óleo e gás, uma posição abaixo do Brasil, e a Venezuela, dona de uma das maiores reservas. São grandes exportadores, mas extremamente pobres, e convivem com uma crise política e de violência que não tem fim.

Governo não desistirá de suas pretensões, mas errará como errou com as usinas nos rios Madeira e Xingu
Há sim possibilidade de crises de preço do óleo e do gás, como em 2022, na invasão da Ucrânia, mas o Brasil não estará imune. A autossuficiência não reduzirá o preço do gás, uma commodity. E, em monopólio, a Petrobras reinjetará mais gás nos poços, para extrair óleo e para reduzir a oferta de gás. É, assim, muito pequena a probabilidade de arrependimento por não explorar a Margem Equatorial.

No entanto, a abertura de novas frentes de óleo e gás, seja lá aonde for, implica ceder na emissão de gases de efeito estufa, com danos concretos para humanidade. E tem outro efeito mais visível: o aumento da oferta de gás implica mais pressão para seu uso na geração de eletricidade, o que deslocará a solar e a eólica, e até a nuclear.

O aumento da temperatura, com picos cada vez mais irregulares, interromperá diversos setores da economia, e não só aulas, shows e partidas de futebol. Para que isso não aconteça, mais equipamentos de refrigeração serão utilizados, que fará crescer o uso de energia e de combustíveis fósseis, que elevará mais ainda a temperatura e assim sucessivamente. É o ciclo da morte climática, cuja métrica não é apenas a das vidas perdidas.

O gás natural, relevante para descarbonizar a indústria, freará a transição energética, e não o contrário. É falso, ou um pragmatismo de ocasião, o argumento de que o dinheiro do gás será usado para a transição.

Explorar a Margem Equatorial e "furar mais e mais", como esbraveja Donald Trump, representam o navio de Teseu, com madeiras novas ou velhas. Mas não levarão a um destino seguro, como fazia o herói de Atenas. Levarão a eventos climáticos extremos, a custos irrecuperáveis trilionários, além de mortes precoces.

Por isso, no embate da Margem Equatorial, os servidores do Ibama, como nas usinas dos rios Madeira e Xingu, que não seriam hoje construídas, estão do lado certo. Serão mais uma vez objetos de todo tipo de assédio, atemorizados, mas não se arrependerão quando virem de perto a espiral da morte climática. Passarão pela terapia do luto, não como culpados.

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/servidores-do-ibama-estao-do-lado-certo.ghtml
 

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