De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias

Um país com índios, Exército e fronteiras

27/04/2008

Fonte: Gazeta do Povo



Um país com índios, Exército e fronteiras
Demarcação de reserva indígena em Roraima coloca em xeque a política indigenista brasileira

Guilherme Voitch, com agências

De quando em quando, algum fato extraordinário faz o brasileiro perceber que existe um país além dos grandes centros urbanos e de Brasília e seus corredores. Esse outro Brasil lembrou que tem índios, Exército e fronteiras. Ao que parece, a lembrança causou desconforto no Brasil de Brasília. A principal responsável pelo incômodo tem nome: a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol.
A reserva ocupa uma área de 1,7 milhão de hectares em Roraima, em uma região de fronteira com Guiana e Venezuela; abriga cerca de 17 mil índios ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e uapixana e mais uma centena de rizicultores, que, muitas vezes em parceria com os próprios índios, fizeram do arroz uma das principais atividades econômicas do estado. A discussão sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol, teve início ainda durante o regime militar, na década de 70. A homologação, no entanto, só veio em 2005, com a assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No final de março, policiais federais e agentes da Força Nacional de Segurança deslocaram-se para a região para dar início a Operação Upatakon 3 e cumprir a determinação do governo de retirar da área os rizicultores que permaneciam no local. Pontes foram queimadas e estradas bloqueadas. No dia 9 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou liminar impetrada pelo governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB), e suspendeu as operações no local. Uma semana depois, em palestra na sede do Clube Militar, no Rio de Janeiro, o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, classificou a política indigenista brasileira de "lamentável e caótica".
Os dois episódios deram origem a reações diversas. Heleno foi taxado de insubordinado. Por outro lado, qualquer "porém" feito à demarcação contínua passou a ser visto como expressão dos inimigos dos índios. "Simplificou-se a história e criou-se uma confusão", diz o general Gilberto Barbosa de Figueiredo, presidente do Clube Militar.
O equívoco, segundo Figueiredo, teria começado com as afirmações sobre a insubordinação de Heleno. "Foi uma crítica a uma política de governo. Quem falou em insubordinação se esqueceu de que o Exército serve ao Estado e não ao governo", ressaltou.
Nas páginas de jornais, Heleno chegou a ser comparado ao general norte-americano George Custer (1839-1876), que massacrou os índios cheyennes e sioux. A comparação, no entanto, não levou em conta as palavras do general, que se disse "aflito" com o que viu em cerca de 15 aldeias indígenas na Amazônia.
Indigenista com 30 anos de serviços prestados à Funai, tendo inclusive participado da demarcação das terras ianômamis na Amazônia, Edívio Batistelli tem uma visão semelhante a do general Heleno ao falar das atuais políticas indigenistas brasileiras. "A Funai vem sendo submetida a um processo de esfacelamento desde 1992, quando acabaram com a idéia de descentralização e as decisões ficaram em Brasília. Acontece que Brasília está muito longe dos índios e os índios querem respostas imediatas", afirma Batistelli. O indigenista se diz favorável à homologação contínua da Raposa Serra do Sol, mas alerta que a tensão criada em Roraima é um sintoma da atual política indigenista nacional. "Tornou-se praticamente impossível demarcar uma terra indígena sem que a questão caia no Judiciário e enfrente um trajeto demorado e complicado."
Isso ocorre, segundo Batistelli, por causa do Decreto 1.775, de 1996. O decreto determina que, em processos de demarcação de terras, as benfeitorias realizadas por não-índios serão ressarcidas. As terras não. O entendimento é de que a terra pertence à União e, portanto, aos próprios indígenas. "Esse não-pagamento sempre vai gerar um descontentamento. E isso é normal. Temos de entender que proprietários rurais estão há anos em Raposa Serra do Sol, por exemplo. Eles investiram ali, plantaram ali e de repente vão ter de sair."
O conflito também fez ressurgir a preocupação com as fronteiras brasileiras. O general Heleno afirmou que homologação contínua de uma extensão tão grande de terras em região fronteiriça colocaria em risco a "soberania nacional".
Militar elogiado por sua atuação frente as tropas brasileiras na missão da ONU no Haiti, Heleno conta com 25 mil homens para vigiar 11,5 mil quilômetros de fronteira terrestre e 1,3 mil quilômetros marítimos de fronteira amazônica. No Norte do Pará, 17 soldados protegem uma faixa de 1.385 quilômetros de traficantes de drogas, de pedras preciosas, organizações dedicadas à biopirataria e guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). O efetivo do Exército e a extensão territorial em questão mostra que, nesse sentido, a ameaça estaria mais nas próprias limitações das Forças Armadas do que na presença indígena. "É uma preocupação legítima do general. Ocorre que não há risco por causa dos índios. A terra é indígena, é da União. O Exército entra ali quando quer e faz o monitoramento que quer. E, creio eu, é inclusive bem-vindo pelos índios", diz a advogada Ana Paula Souto Maior, do Instituto Sócio Ambiental (ISA), uma das principais ONGs que atuam na região amazônica.
As próprias ONGs porém foram levadas ao epicentro da discussão iniciada com a Raposo Terra do Sol. A Casa Civil e o Ministério da Justiça estudam a criação de uma permissão de funcionamento para que as entidades atuem na Amazônia. A suspeita é de que determinadas organizações obedeceriam uma lógica comercial de seus países de origem e poderiam estar colaborando com crimes de biopirataria. "Precisamos ter normas especiais para controlar a entrada de ONGs lá (Amazônia), principalmente estrangeiras, e todas que façam trabalhos vinculados a outros interesses que não os definidos em seus estatutos", afirmou o ministro da Justiça, Tarso Genro, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo.
Os índios da Raposa Serra do Sol ainda esperam a decisão do Supremo sobre a demarcação das terras. Enquanto isso, um Brasil que parecia adormecido vai se lembrando que tem índios, que tem Exército e que tem fronteiras.


Funai também disputa áreas indígenas em território paranaense

No Paraná, litígios envolvendo índios e não-índios também não são novidade. Desde 1974, a Funai e um grupo empresarial do estado disputam uma área de 9 mil hectares entre os municípios de Mangueirinha, Chopinzinho e Coronel Vivida, na Região Centro-Sul do estado. A chamada reserva de Mangueirinha abriga hoje cerca de 2 mil índios guaranis e caingangues. Apesar de a primeira ação ter sido ajuizada em 1974, só houve uma decisão sobre o caso em dezembro de 2005, quando o juiz federal substituto Mauro Spalding reconheceu a posse indígena sobre a terra. "Dois advogados da Funai já morreram e ainda não temos uma solução definitiva nesse caso", diz o indigenista da Funai Edívio Batistelli, que também atuou como assessor especial para Assuntos Indígenas do Governo do Estado.
Se os guaranis e caingangues que vivem na reserva de Mangueirinha ainda esperam a decisão final da Justiça, os remanescentes dos xetás (o menos numeroso detre os grupos indígenas que habitaram o Paraná) permanecem desagrupados e desaldeados desde a década de 50, durante o contato com a colonização branca no Sudoeste paranaense. Os poucos remanescentes vivem em reservas de outras etnias e em cidades. Em 2000, um grupo de estudo passou a analisar a possibilidade de reagrupamento dos remanescentes xetás. Em 2005, foi entregue o relatório fundiário para a Funai. Desde então, dois dos representantes mais antigos da etnia morreram, enquanto a delimitação da área indígena xetá repousa nas prateleiras da Funai em Brasília.

Gazeta do Povo, 27/04/2008
 

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