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De volta para a tribo

13/12/2009

Fonte: FSP, Saúde, p. C15



De volta para a tribo
O menino Silas Miquiles, 12, índio da tribo sateré-mawé, perdeu uma perna após ser mordido por uma cobra. Graças ao trabalho de uma organização, vai receber uma prótese que lhe permitirá levar uma vida normal na sua aldeia

Gabriela Cupani
Da reportagem local

Até os nove anos, o menino Silas Miquiles, hoje com 12, levava uma vida como a de qualquer outro curumim sateré-mawé -tribo encravada entre o Amazonas e o Pará, localizada na reserva Andirá-Marau.
Ia à escola, gostava de caçar aves -principalmente os papagaios que destruíam a plantação-, cuidava de sua roça, onde cultivava milho e abacaxi, ajudava a tecer peneiras, cestos e redes. Adorava jogar futebol.
Precoce, queria ir além, como os mais velhos, acompanhar os adultos nas caçadas dos animais maiores -veados, cotias, porcos, antas- dentro da mata.
Num sábado, um tio resolveu matar a vontade do garoto e o convidou para participar de uma caçada. Com a ajuda de um cachorro, encurralaram uma cotia. Silas saiu atrás, correndo com sua flecha. Mas, ao dar um salto, não percebeu e caiu bem em cima de uma surucucu, uma das cobras mais venenosas que habitam a Amazônia.
Ele deu dois gritos -um a cada mordida que recebeu na perna direita- e desmaiou. O tio reconheceu imediatamente a espécie, conhecida por pico-de-jaca. Seu veneno é tão poderoso que pode matar uma pessoa em poucas horas.
O menino foi levado para a aldeia e dali para Parintins, a cidade mais próxima -que fica a cerca de cinco horas de barco. Recebeu o soro antiofídico e ficou internado por quatro dias, sem melhorar. "Ele estava todo inchado", lembra o pai. "Não falava nada, só revirava os olhos, pensei que fosse morrer."
Especialistas acreditam que ele só não morreu, provavelmente, porque a cobra tinha se alimentado havia pouco e, por isso, teria menos veneno. Mas, àquela altura, a perna de Silas estava necrosada.
Os médicos decidiram levá-lo para Manaus, onde constataram a necessidade de amputar o membro. A infecção poderia se alastrar pelo organismo, colocando sua vida em risco.
Mas, para Silas, a vida sem uma perna perdeu a graça. Deixou de caçar e de jogar futebol, coisas que adorava. Até a pesca ficou difícil. Na escola, foi apelidado de Saci-Pererê -e perdeu a vontade de ir às aulas. No próximo ano, quando irá para a quinta série, precisa mudar para uma escola que fica em outra aldeia -mas ele não quer.
Silas ainda cuida da sua roça e continua ajudando a tecer. Mas, para os índios, não poder caçar significa não poder sustentar a família. Muitos perdem a mulher por causa disso. Silas já avisou ao pai que, quando ficar adulto, quer se matar.

Expedicionários
A situação do curumim chamou a atenção dos Expedicionários da Saúde, um grupo formado em 2002 por iniciativa de dois médicos de Campinas, no interior paulista, que visita tribos indígenas da Amazônia.
Eles fazem um verdadeiro mutirão de cirurgias -principalmente de catarata e de hérnia. Quando não conseguem realizar o tratamento necessário no local, deslocam o indígena até São Paulo.
"Eles têm o básico, tanto que a mortalidade infantil caiu e o tratamento da malária aumentou", diz Ricardo Affonso Ferreira, um dos idealizadores do projeto. "Mas o atendimento especializado é mais difícil. Precisam ir a Manaus e entrar na fila do SUS", diz. "Por isso, às vezes ficam cinco ou seis meses fora da aldeia e, ainda assim, não recebem atendimento."
A ideia de fundar a associação surgiu após uma excursão ao pico da Neblina, no Amazonas. O contato com uma tribo ianomâmi despertou o desejo ajudar os índios. Com o auxílio de antropólogos, procuraram as instituições responsáveis pelo atendimento à saúde para planejar uma atuação conjunta.
A cada ano, visitam uma reserva. Em abril, escolheram a terra Andirá-Marau, onde vivem cerca de 10.000 índios sateré-mawé. Naquela expedição, eram 42 profissionais voluntários. Sensibilizados com o caso de Silas, convidaram o indiozinho a viajar até Campinas para receber uma prótese.
Para viabilizar o tratamento, Ferreira contatou seu colega Marco Guedes, que dirige uma clínica de reabilitação de amputados, em São Paulo.
Silas, que nunca tinha visto um amputado em sua vida, se sentiu imediatamente identificado. Além dos demais pacientes, o próprio doutor Marcos lhe mostrou que também usa uma prótese desde um acidente de moto que lhe custou uma perna, há mais de 20 anos.
Na clínica paulista, Silas começou um trabalho de fisioterapia para "acordar" alguns músculos que estavam atrofiados. "O amputado tem alterações posturais, pode ter deformações na coluna e atrofia da musculatura pélvica", explica Guedes. A fisioterapia vai ajudá-la a reposicionar os membros para poder caminhar com a prótese.

Desafio inusitado
"Tivemos que avaliar muito bem qual a melhor prótese para resistir à água, ao barro etc.", diz Guedes. "É um desafio inusitado, vamos aprender juntos." Depois de uma longa avaliação, a equipe que cuida do caso optou por um modelo que prioriza funcionalidade, durabilidade e baixa manutenção.
Feita de um tubo de titânio, terá um pé revestido de borracha de pneu de avião, altamente resistente. Mas ele só deve receber essa prótese definitiva, que será doada pelo fabricante, no mês de janeiro.
Até lá, Silas vai usar uma provisória, mais simples, para começar a se adaptar ao uso -até porque o local do encaixe sofre modificações.
"A prótese lhe permitirá ter uma vida praticamente normal. Agora ele tem o desafio de ser um exemplo para seu povo, de ser um guerreiro e mostrar que consegue fazer tudo, apesar da amputação", diz Guedes.

FSP, 13/12/2009, Saúde, p. C15
 

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