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Pesquisa Indígena direciona a construção de uma proposta de ensino superior do Rio Negro

12/04/2010

Autor: Andreza Andrade

Fonte: Instituto Socioambiental - http://www.socioambiental.org/nsa/




No segundo dia do seminário Manejo do Mundo, que acontece em São Gabriel da Cachoeira, o tema "pesquisas indígenas e sua relação com manejo do mundo" trouxe convidados indígenas cujas falas ensejaram reflexões sobre como elas podem contribuir para um ensino superior. Elas criam ferramentas que formam seus próprios pesquisadores e abordam temas como saúde, meio ambiente, gestão territorial, educação, sustentabilidade, cultura, de extrema relevância para a vida nas comunidades indígenas.

Ao relatarem suas experiências e seus processos de pesquisa, os indígenas refletiram sobre o papel dessas investigações, que acontecem atualmente dentro das escolas indígenas e/ou associações de base, tendo em vista que antigamente a transmissão do conhecimento se dava em outros espaços, sobretudo nas malocas onde o aprendizado orquestrado pelos mais velhos usava a oralidade como método de ensino

A chegada dos brancos na região mudou radicalmente todo o sistema de vida comunitária. Os missionários empreenderam a escrita, a religião e à medida que essas sociedades eram conquistadas se inicia uma relação de poder onde o conhecimento só é construído e valorizado a partir de registros escritos e dentro de ambientes novos como as escolas. "Se hoje os tuyuka optaram por adotar a escrita é para realmente tentar igualar com o mundo dos brancos essa relação de poder que se empreendeu para a construção do conhecimento", disse Higino Tenório Tuyuka, da Escola Tuyuka Utapinopona, do Alto Rio Tiquié.

A criação de uma escola própria

Portanto, as experiências de ensino via-pesquisa desenvolvidas no rio Negro por meio das escolas indígenas, deve-se à crença de que esse método é o que mais se aproxima das formas de investigação de como se fazia antigamente, onde os mais velhos orientam os mais jovens. "Com o passar dos anos, os mais velhos começaram a concluir que o ensino convencional do "branco" não estava formando os jovens para a vida na comunidade. Foi a partir daí que pensamos em criar uma escola própria, com método de ensino via-pesquisa, onde pudéssemos vivenciar não só o conhecimento dos brancos, mas principalmente a nossa cultura, onde o jovem pudesse aprender sua língua, fazer utensílios, conhecer seu território para prática da sustentabilidade. E se hoje não acontecem mais essas cerimônias tradicionais para transmissão de conhecimento nós inventamos outra moda de reunir os jovens, chamar nossos velhos e tentar recriar nesses espaços o modo de transmissão de certos conhecimentos" disse Juvêncio Cardoso, professor da Escola Pamáali, localizada no Médio Rio Içana.

Levar os velhos conhecedores para dentro das escolas traz novos desafios para a proposta de ensino. Os participantes levantaram que há riscos de acontecer uma uniformização do conhecimento já que existem saberes que são específicos de um clã, de uma família e etc. A partir do contato com os brancos, a saída da maloca trouxe uma certa individualidade para as famílias que antes compartilhavam conhecimentos. Com o passar dos anos, esses saberes circulam apenas dentro das casas e se eles são levados para as escolas podem não ter o mesmo significado de antes, pois com a institucionalização desse saber por meio da escola, formas de transmissão como a oralidade, tendem a não ser valorizadas. "Na escola até o momento se respeita a escrita e a leitura, porque temos que conviver com esses dois encontros de cultura: a nossa e a do outro.

E esses conhecimentos são valiosos e respeitados. Na escola acontece o mesmo que acontecia na maloca, porém de uma maneira mais pedagógica. No entanto, não sabemos em que medida isso é suficiente para garantir a transmissão de conhecimento, vai ser conforme nossas pesquisas apontarem" disse Maximiliano Garcia Makuna da Acapi (Asociación de Capitanes e Autoridades Tradicionales de Piraparaná).

"Os conteúdos levados para a escola são organizados por projetos temáticos, assim podemos desenvolver pesquisas em diversos espaços, isso vai desde a roça, caça, pesca, território, maloca. Mas levar esses conteúdos para a escola requer muito tempo de análise, prática, ensaio, para poder chegar numa metodologia favorável. Para ensinar nossas histórias tem uma metodologia, para ensinar carriço também precisa de metodologia, para poder ensinar a caçar, pescar, ritual de jurupari também precisa de métodos diferentes. O professor tem que entender o suficiente desses conceitos técnicos tradicionais para poder orientar os processos de formação das nossas crianças", disse Rivaldo Bolívar Tatuyo, do Piraparaná/Colômbia.

Calendário ecológico socioeconômico ritual e os ciclos de vida

A visão dos povos indígenas do Rio Negro sobre manejo do mundo é complexa, abrangente e interrelaciona vários aspectos da vida e do mundo. O movimento das constelações marca as mudanças de tempo, como verões e invernos. Os invernos e verões coincidem com a ocorrência de uma série de fenômenos naturais (variações no nível do rio, subida e piracema de peixes, floração, frutificação, revoada de saúvas, manivaras, subida de animais do mato), que por sua vez são associados à realização de atividades econômicas (roça, pesca, caça e coleta de frutas) e rituais (benzimentos para doenças de cada época e festas cerimoniais). A relação de todos esses fenômenos entre si é o que constitui um calendário ecológico, socioeconômico e ritual.

No segundo dia de debates, pesquisadores das etnias Baniwa, Makuna, Tuyuka, Tukano, Tatuyo relataram suas experiências e apresentaram os resultados de uma das pesquisas mais importantes, pois o calendário interrelaciona o movimento das constelações a outros ciclos da natureza e da vida social. O calendário é circular e dinâmico, vai se desdobrando de diversas formas, conforme as mudanças nos ciclos naturais. A partir dele também se podem tirar diversos ciclos desde aqueles que vão se adequar ao manejo ambiental até aos calendários mais sistêmicos como o próprio calendário escolar.

No Piraparaná, a pesquisa já acontece há mais tempo que no Rio Negro, os intercâmbios em âmbito de Canoa (Cooperação e Aliança no Noroeste Amazônico) permitiram que grupos do lado brasileiro se inspirassem para desenvolver suas pesquisas também. "As regras do bem-viver também estão marcadas no nosso calendário, ou seja, em cada círculo estão elementos da nossa vida ritual que se interliga com tudo o que fazemos e passamos, as atividades das malocas, dos benzimentos de curas de determinadas doenças que aparecem conforme as mudanças, dos invernos, verões, épocas de coleta, de piracema e etc". "Por isso nossas atividades culturais devem ser planejadas com base no calendário e a gestão púbica deve se ajustar a ele também. Não podem ter atividades quando o calendário não permite, por exemplo, na época de jurupari não tem atividades escolares, e é difícil as secretarias de educação entender isso", disse Rivardo Bolívar, do Piraparaná.

Assim como no lado colombiano, a pesquisa do calendário ecológico do lado brasileiro desenvolvida nas escolas Baniwa Coripaco, Tukano Yupuri e Tuyuka Utapinopona surgiu partir da preocupação das lideranças em promover momentos de ensino-aprendizagem dos conhecimentos próprios sobre astronomia e sua articulação a uma concepção de manejo ambiental tendo em vista o movimento das constelações a outros ciclos da natureza e da vida social. Os velhos conhecedores foram os grandes mestres que orientaram as pesquisas e contou com apoio de astrônomos e antropólogos.

Algumas iniciativas de pesquisas como as dos Aimas - Agentes Indígenas de Manejo Ambiental, das escolas e associações do Tiquié, Uaupés e Içana, utilizam o calendário ecológico para desenvolver a prática de registro diário a fim de observar os ciclos da vida e seu manejo. Eles realizam vários encontros para sistematizar informações dos seus diários de campo, representando através de gráficos e textos os fenômenos ecológicos, atividades econômicas e acontecimentos sociais que aparecem sob o amparo de cada constelação ao longo dos ciclos anuais.

Cornélio Lobo, Aima da Associação da Escola Indígena Tukano Yupuri, explica que a partir do ciclo da constelação da jaracara (aña) a observação do nível do rio em gráfico e as transformações sofridas no ambiente entre 2008 e 2009: "a linha do gráfico é um período de "meia água", tem várias linhas de cores diferentes que mostram dias de verão com chuva, dias nublados, muita chuva e etc. Quando comparamos em um ano dá para observar que conforme o nível do rio tem igapó, muitas piracemas, houve uma grande enchente em 2008, mas que em 2009 não teve mais. Ainda estamos pesquisando e esperando como será em 2010", relatou.

Trabalhos de grupos

Já no terceiro dia (11/4), foram formados grupos de trabalhos que aprofundaram os temas já discutidos até o momento a fim de verificar como as pesquisas já desenvolvidas podem ser aprofundadas numa formação superior, levando em consideração a questão das línguas, calendários ecológicos, oralidade, espaços de transmissão de conhecimento. Abaixo alguns apontamentos feitos pelos grupos:

Calendário ecológico socioeconômico ritual:

- É uma forma de aprofundar o diálogo entre os próprios grupos internamente, seja entre velhos e jovens, entre escola e ambientes extra-escolares;

- É um tema que integra tanto aspectos cosmológicos, sociológicos, temporais, biológicos, ecológicos, de subsistência, e também vitais (como saúde, doenças, benzimentos e proteção). Todos esses subtemas podem virar alvos de trabalhos e pesquisas;

Oralidade:

- O nome "maloca" foi dado pelos missionários que quer dizer "mal-oca", por isso queremos mudar esse termo para "Caraco wi" (na língua tukano), que quer dizer a essência da vida saudável. "Caraco wi" deve ser valorizada nesse ensino superior, pois ela é o espaço de valorização da oralidade quando se pensa em transmissão de conhecimento;

Espaços de formação:

- Mobilização do movimento indígena, ongs, universidades parceiras e a sociedade brasileira para mudança do sistema de ensino indígena, para que nossa formação superior seja reconhecida. - Uso de tecnologia que possam ajudar a comunicação e facilitar a gestão de conhecimento; - Processos e produtos devem/podem lidar com diferentes formas de transmissão dos conhecimentos

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