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Lobby da mineração de potássio chega ao STF

20/02/2025

Autor: Nicoly Ambrosio

Fonte: Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br



Manaus (AM) - Uma proposta de alteração da Lei do Marco Temporal, que prevê a mineração em terras indígenas no Brasil, foi apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e recebida com forte repúdio entre lideranças e entidades indígenas. Os indígenas afirmam que continuarão a resistir contra a medida. A minuta, divulgada no dia 14 de fevereiro, propõe mudanças nos direitos indígenas relacionadas à Lei 14.701/2023, que regula o marco temporal para a ocupação de territórios indígenas após a promulgação da Constituição Federal de 1988. A proposta será discutida na mesa de conciliação sobre o tema, marcada para o próximo dia 24, no STF.

A inclusão da "exploração de recursos minerais estratégicos" no artigo 21 da minuta foi baseada em sugestão de Luís Inácio Lucena Adams, que participa da Câmara de Conciliação para discutir o marco temporal no STF representando o Partido Progressista (PP). Ele integra a equipe de advogados e sócios da empresa Potássio do Brasil.

O empreendimento tem um projeto de exploração minerária que impacta terras do povo Mura, na cidade de Autazes, no Amazonas, e ameaça diretamente as aldeias Lago do Soares e Urucurituba. Lago do Soares é a área mais atingida, pois a mina de potássio fica dentro do território.

"Quando a gente vê uma notícia dessa, a gente fica de mãos atadas porque a gente vê que o outro lado consegue caminhar a passos mais longos que nós. A gente vai atrás da Funai, vai atrás do Ministério dos Povos Indígenas e parece que pouco somos ouvidos. Qquando se fala do povo Mura, quando se fala de potássio, parece que a gente é totalmente esquecido. Mas a gente não vai parar de lutar", disse o tuxaua do Lago do Soares, Gabriel Mura, à Amazônia Real.

O tuxaua do Lago do Soares afirma que é urgente a Funai retomar os estudos diante as ameaças da exploração minerária. Em agosto de 2023, a Funai criou o Grupo de Trabalho para delimitação do território.

"Desde a criação do GT, a Funai fez apenas uma visita. Algumas pessoas da Funai dizem que um grupo voltaria, mas a Funai ficou no aguardo de uma decisão sobre o marco temporal. O que a gente vê é que o GT fica muito preso a uma decisão da Funai. Muitos prometem, dizem que não está parado, mas também não dizem o que vai acontecer. A gente fica pedindo, perguntando, ficam estipulando uma data, mas não fazem nada".

Conforme Gabriel Mura, a Potássio do Brasil tem assediado e cooptado as lideranças indígenas e disseminado informações falsas sobre o avanço do projeto de mineração em Autazes. Segundo o tuxaua, apesar da empresa ter obtido licenças, ainda não iniciou a construção, pois há entraves jurídicos e resistência da comunidade.

Ele disse que, até agora, as únicas intervenções realizadas pela empresa no território foram a limpeza de ramais, perfuração de poços e obras em estradas, feitas em parceria com a prefeitura da cidade de Autazes. "É justamente a luta da resistência que tem feito isso acontecer", diz.

À Amazônia Real, Mariazinha Baré, coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (APIAM), declarou que a proposta de Gilmar Mendes representa uma afronta direta aos direitos dos povos originários e à autodeterminação das comunidades.

"Consideramos inapropriada a proposta em discussão pela comissão de conciliação coordenada pelo ministro Gilmar Mendes. A manobra para impor a exploração de mineração nos nossos territórios desrespeitando o nosso direito de ser devidamente consultado é mais uma tentativa das forças políticas e econômicas de avançar e impor projetos colonizadores", disse Mariazinha Baré.

Ela destacou que a proposta afeta os modos de vida dos povos e vai na contramão da conservação do meio ambiente, em plena crise humanitária e climática.

"A proposta de mineração atende apenas aos projetos das grandes empresas que em articulação com o agronegócio querem explorar os recursos das nossas terras, nos expulsando dos nossos territórios", reforçou.

Segundo Gabriel Mura, indígenas que são contrários à exploração minerária na região estão se organizando para contrapor ao posicionamento do Conselho Indígena Mura (CIM), que nos últimos anos têm se colocado a favor do empreendimento, causando divisões no povo.

Ele disse que a Organização Indígena da Resistência Mura de Autazes (OIRMA) surge como uma nova organização de resistência do povo Mura contra a exploração de seus territórios, especialmente diante da proposta de Gilmar Mendes e do apoio de governos locais à mineração de potássio.

"A gente sabe que a luta do povo indígena nunca vai parar porque vão sempre tentar violar nossos direitos. Mas a gente não está de acordo com essa questão do Gilmar Mendes. Estamos vindo justamente para mostrar o que é resistência de verdade, Se não desse resultado, a empresa com certeza já teria explorado. Mas é justamente a resistência que não está deixando", afirmou o tuxaua do Lago do Soares.

De acordo com Ricardo Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a proposta apresentada por Gilmar Mendes permite a exploração dos territórios indígenas, instituindo um processo de estudo e a atividade minerária que coloca o consentimento das comunidades como uma etapa adicional, mas sem garantir um poder de veto real.

"A comunidade nesse caso não tem um poder de veto. Esse consentimento não tem um efeito prático no sentido de impedir que o empreendimento realmente ocorra dentro do território", afirmou.

O advogado ressaltou que a minuta tem um impacto direto no caso do povo Mura, uma vez que um dos principais questionamentos sobre a validade e legalidade dos empreendimentos é justamente a falta de consulta livre, prévia e informada, que o povo Mura não teve no momento do empreendimento. "É um impacto direto na situação", concluiu.

A comissão de conciliação sobre a lei do marco foi criada ano passado por Gilmar Mendes, mas sua representatividade e legitimidade foi questionada por lideranças e organizações indígenas. Entidades com a APIB se retiraram da comissão, em protesto.

Articulação no governo

Nos últimos dias, a empresa Potássio do Brasil voltou a se articular para obter apoio dentro do governo federal. O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, recebeu no dia 14 de fevereiro representantes da Brazil Potash Corp. para discutir o andamento do Projeto Potássio Autazes, em uma reunião que contou com a presença do presidente da Potássio do Brasil, Adriano Espeschit.

Também participaram três membros do Conselho Consultivo da Brazil Potash Corp.: a ex-senadora e ex-ministra da Agricultura do governo Dilma, Kátia Abreu, figura notória da defesa de pautas ruralistas; William Steers, representando o fundador e presidente do Conselho Consultivo da empresa, Stan Bhart, e o advogado Luís Inácio Lucena Adams. Alckmin já se mostrou a favor do projeto, em visitas realizadas em Manaus.

A presença de Adams na reunião se destaca pelo seu papel duplo como representante do PP na mesa de conciliação sobre o marco temporal no STF e como advogado da Potássio do Brasil.

Adams foi chefe da Advocacia Geral da União (AGU) no segundo mandato de Lula na presidência, em 2009. Ele foi reconduzido ao cargo no governo de Dilma Rousseff (PT).

Alinhado aos interesses ruralistas, em 2012, Adams assinou uma portaria na qual, entre outras decisões, autorizava o poder público intervir em territórios demarcados sem precisar ouvir os povos indígenas. A portaria 303 se baseou em orientações que constavam nas salvaguardas do STF no julgamento da Raposa Serra do Sol e que ainda não haviam sido devidamente discutidas e definidas. O documento foi muito criticado e contestado por especialistas do direito e por lideranças indígenas e indigenistas.

O empreendimento Potássio do Brasil tem amplo apoio do governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil) e de políticos locais. A Potássio do Brasil já conseguiu algumas licenças controversas do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão licenciador do governo estadual, para o empreendimento e costuma informar a negociadores que o projeto não tem impacto ambiental. Todas as licenças foram contestadas pelo Ministério Público Federal e derrubadas na primeira instância da Justiça Federal. Atualmente, o processo tramita no TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região).

Falta de consulta

A medida de Gilmar Mendes também fere a consulta prévia, livre e informada, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao permitir que o governo possa pôr em prática projetos de mineração em caso de "ausência de consenso". No caso da Potássio do Brasil, o Ministério Público Federal contesta o projeto de exploração de potássio em Autazes, apontando fraudes no processo de consulta aos indígenas e cooptação de lideranças indígenas.

As sugestões para a elaboração da minuta foram apresentadas em reunião no dia 10 de fevereiro por sete integrantes da comissão. Entre eles estão Célia Xakriabá (deputada federal pelo PSOL-MG), Luís Inácio Lucena Adams (advogado do PP), Matheus Oliveira (representante da Funai), Bruna do Amaral (advogada do PSOL), Paulo Machado Guimarães (advogado do PT, PCdoB e PV), Rudy Maia Ferraz (advogado do PL e Republicanos) e Lara Loureiro Cysneiros Sampaio (advogada do PDT).

A deputada indígena Célia Xakriabá foi impedida de se sentar à mesa de conciliação do marco temporal no último dia 17 de fevereiro. Suplente na comissão, ela participou de 12 das 16 reuniões anteriores e solicitou ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), sua efetivação como titular. Motta optou por nomear a deputada bolsonarista Sílvia Waiãpi (PL-AP), que apoia o Marco Temporal e a mineração em terras indígenas.

Conciliação às avessas
A minuta apresentada por Gilmar Mendes surge em meio a um longo conflito sobre os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. Em setembro de 2023, o STF considerou inconstitucional a tese do marco temporal. Apesar da decisão, em fevereiro de 2024 o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701, que restabeleceu o marco temporal e teve influência da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

Em resposta às contestações dessa lei, o ministro criou em abril de 2024 uma comissão de conciliação para buscar consenso entre governo, Congresso, empresas de mineração e agronegócio e representações indígenas. A conciliação conduzida pelo próprio Gilmar Mendes no STF, supostamente para equilibrar os interesses sobre as terras indígenas, foi criticada como uma manobra para legitimar a exploração dos territórios.

O movimento indígena denunciou o processo como unilateral e repleto de pressões políticas e empresariais, beneficiando empresas como a Potássio do Brasil. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da mesa de comissão em agosto de 2024, por imposições inaceitáveis sobre os direitos indígenas. A comissão foi mantida mesmo com a saída da principal entidade representativa dos povos indígenas brasileiros.

Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, afirmou que a decisão de sair da conciliação do STF ocorreu porque o processo não oferecia transparência nem garantia de proteção aos direitos indígenas assegurados pela Constituição de 1988. "A Apib participou da mesa com disposição para dialogar. No entanto, a não suspensão da Lei 14.701/2023 sinaliza incoerência. Na primeira audiência, a entidade se deparou com um ambiente hostil e foi informada de que a lei seguiria em vigor, apesar da violência que já provoca nos territórios", disse.

Para a Apib, a mesa de conciliação, que deveria avaliar as inconstitucionalidades da lei, virou um espaço onde direitos já garantidos começaram a ser negociados, "uma manobra para mudar, sem debate real, conquistas protegidas pela Constituição", disse Kleber Karipuna.

A liderança reforçou que a entidade indígena segue com a decisão de não participar da mesa e nem indicar novas lideranças, já que não houve condições mínimas e justas para uma participação verdadeira.

Sobre a proposta de minuta feita por Gilmar Mendes, a Apib vê nela um favorecimento a interesses privados, especialmente do setor mineral, às custas da proteção territorial indígena, embora rejeite o Marco Temporal.

"A liberação da mineração em TIs é resultado de manobras do centrão e do lobby do setor mineral. Ele faz diversas concessões ao agronegócio e ao setor mineral. Essas mudanças podem dificultar futuras demarcações e enfraquecer a proteção das TIs já reconhecidas. Além disso, sob o argumento de que a mineração é uma atividade estratégica e de utilidade pública, o Estado tem repetidamente favorecido o setor, mesmo quando isso impacta os direitos territoriais indígenas, que também são de interesse público. Na prática, essa visão dá ao setor mineral privilégios que colocam seus interesses acima dos direitos coletivos", disse o coordenador executivo.

Em relação à mineração de potássio em Autazes, a Apib acompanha o posicionamento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e repudia a licença concedida à empresa Potássio do Brasil, em um contexto de violação de direitos, alertando que essa autorização já provoca danos irreparáveis ao território e ao povo Mura.

Texto sem consenso

A recente proposta de minuta foi elaborada sem diálogo com os povos indígenas, contrariando a Convenção 169 da OIT. Em nota oficial, o Ministério dos Povos Indígenas expressou surpresa com a inclusão do tema da mineração na minuta e reiterou sua posição contrária à exploração em territórios tradicionais. O MPI afirmou que o tema não foi tratado em nenhum momento durante os seis meses de discussão na mesa de conciliação.

"Vale ressaltar, ainda, que existem outros pontos que geram severa preocupação, sobretudo nos aspectos relativos ao procedimento demarcatório, ao direito de retenção por ocupantes não indígenas enquanto não indenizados e à desocupação forçada de indígenas em caso de conflitos, entre outros. O texto apresentado não expõe consensos em relação aos tópicos e traz preocupantes inserções, que distanciam ainda mais os indígenas de seus legítimos interesses. O MPI sempre foi contra o marco temporal e reforça sua posição na defesa dos direitos indígenas sem negociação de direitos pétreos já assegurados", diz um trecho da nota do Ministério.

Segundo a pasta, sua presença na comissão de conciliação tem a intenção de mitigar os danos da já aprovada Lei 14.701 e garantir os direitos indígenas, mas o tema da mineração não deveria estar em discussão. O Ministério alerta que essa atividade representa riscos ambientais e à saúde dos povos originários, e defende que qualquer debate respeite a autodeterminação indígena.

A Amazônia Real procurou a Funai para saber o andamento do GT de delimitação do Lago do Soares. Caso a resposta seja enviada, será atualizada nesta reportagem.

https://amazoniareal.com.br/lobby-da-mineracao-de-potassio-chega-ao-stf/
 

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