De Povos Indígenas no Brasil
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Enciclopédia de Babel
21/08/2005
Fonte: FSP, Ilustrada, p. E5-E6
Enciclopédia de Babel
Maior estudo sobre línguas, "Ethnologue" conta 6.912 idiomas no mundo; 497 estão ameaçados
Pedro Dias Leite
De Nova York
Mais de 860 milhões de chineses falam mandarim. Apenas dois brasileiros, se ainda estiverem vivos, falam apiacá. A lista pode continuar indefinidamente, porque é longa, muito longa, ao menos a julgar pela nova edição do "Ethnologue", o maior compêndio sobre línguas já feito no planeta. De acordo com o livro, são 6.912 línguas em todo o mundo.
O trabalho começou em 1951 como uma espécie de guia, com apenas 40 línguas, para missionários cristãos, e hoje lista quase 7.000 idiomas, quantas pessoas os falam e onde fica essa população. O livro não ensina nenhuma das línguas, apenas cataloga, e é editado de quatro em quatro anos -por problemas tecnológicos, a atual edição levou cinco anos.
Mas essa busca por descobrir todas as línguas do mundo pode estar perto de ser concluída, segundo disse à Folha o editor do livro, Ray Gordon. "Eu suspeito que estejamos próximos de determinar todas as novas línguas. Talvez haja mais 300 ou 400 que ainda não estão identificadas, que se separaram de grupos no Pacífico e na Ásia e que ainda não tivemos pesquisa local suficiente."
No Brasil, o trabalho está praticamente completo: são 188 línguas (o português é de longe a principal), muitas delas faladas por pequenos e isolados grupos indígenas. Existem outras 47 que já foram extintas. O número vem oscilando pouco ao longo dos últimos 20 anos. Em 1982, eram 238 línguas no total, com 30 extintas. Na edição anterior, de 2000, contavam-se 234 línguas, 42 extintas.
O "Ethnologue" considera como línguas diferentes aquelas em que dois povos não conseguem se comunicar se cada um falar a sua. Povoados asiáticos que têm uma origem num dialeto comum, mas com o passar dos tempos não se entendem mais, são considerados povos com línguas diferentes.
"Nos anos recentes, o número de línguas subiu e desceu ao mesmo tempo. Subiu, porque há situações em que algumas línguas se dividiram. E desceu porque, em outras, descobrimos que onde identificamos mais de uma língua, na verdade, falavam a mesma variedade. Então reduzimos o número e classificamos essas linguagens como dialetos", explica o editor, Gordon.
Para chegar às línguas, são utilizadas basicamente três fontes: bibliografia, contatos com lingüistas e antropólogos e trabalho de campo. Na atual edição, cerca de cem pessoas contribuíram diretamente.
No Brasil, o trabalho é feito desde 1950. "Acredito que já cobrimos todas as línguas lá. Ao longo das últimas edições, o número tem sido relativamente estável. Em outras palavras, o número de línguas extintas tem crescido levemente, e nós tivemos mais informações sobre o restante", diz Gordon, cujo estudo tem confiabilidade questionada por especialistas brasileiros.
A tendência é que as línguas em risco de extinção desapareçam no espaço de uma geração. Ao todo, são 497 ameaçadas no mundo, e o Brasil concentra 30 delas. Em algumas, pouquíssimos falam a língua, caso do ofaié, idioma indígena dominado só por 11 pessoas, em Brasilândia (MS).
"Tenho certeza de que, ao longo de cinco anos, algumas delas já devem ter sido extintas. Prevemos que nos próximos 25 anos a maioria dessas [497] línguas tenha sido ou esteja próxima de terem sido extintas", conta.
Ao mesmo tempo em que ajuda a preservar essas línguas por registrar sua existência, o "Ethnologue" é criticado por estudiosos justamente por isso. Como até hoje a empresa que o produz utiliza o livro como base para traduzir a Bíblia para missionários, alguns especialistas afirmam que isso acaba por extinguir esses idiomas.
"É absurdo pensar no SIL [que produz o livro] como uma agência de preservação, quando eles fazem o oposto. Junto ao extermínio da religião nativa, todas as formas cerimoniais de discurso, músicas e arte associadas com a religião desaparecem também", disse ao "New York Times" Denny Moore, um lingüista que trabalha no Estado do Pará há 18 anos.
O SIL (Summer Institute of Linguistics, instituto de verão para lingüística) treina missionários para aprender as línguas locais e traduzir a Bíblia. "Os funcionários do SIL realmente trabalham com isso, mas a proposta do "Ethnologue" é fornecer documentos de referência nas línguas do mundo", diz o editor da atual edição.
Ainda neste ano, o livro deve ser comercializado em larga escala -hoje a obra só está disponível pelo site ethnologue.com, mas a intenção é vendê-la em livrarias.
Compêndio é útil, mas sofre com viés ideológico, dizem lingüistas
DA REPORTAGEM LOCAL
Ambrangente, útil, mas falho. Dois lingüistas ouvidos pela Folha concordam que o "Ethnologue" é o mais amplo estudo do gênero existente, mas apontam deficiências. Para o professor Aryon Rodrigues, 80, da Universidade de Brasília, o catálogo é "o maior inventário de línguas do mundo, o que não se pode desprezar". Mas tem equívocos, como incluir o cafundó como língua, sendo este um código que mistura português e quimbundo, idioma africano, em comunidades quilombolas remanescentes.
O lingüista Eduardo Ribeiro lembra que, até a edição anterior do "Ethnologue", o ofaié era listado como fala já extinta.
"Isto porque a lingüista Sarah Gudschinsky esteve lá nos anos 50 e achou que havia entrevistado o último falante de ofaié", conta.
Segundo Ribeiro, outra língua indígena brasileira, o caingangue, do interior de São Paulo, também é dada como extinta, embora não esteja. Para ele, o "Ethnologue" sofre com a falta de diálogo com a comunidade acadêmica local, e, sobretudo, com o viés ideológico.
"A maioria dos lingüistas da América do Sul acha que não é uma fonte confiável pois se trata justamente de uma instituição de missionários, que não está interessada na diversidade cultural, mas sim em que todos tenham uma mesma crença. E os ritos religiosos estão intimamente ligados às falas", diz Ribeiro. (ES)
Uma língua em extinção
Em Brasilândia (MS), 11 pessoas são as únicas no mundo que falam ofaié, idioma prestes a acabar
Eduardo Simões
A brasileira Francisca da Silva, 92, não fala nem entende o português. No dia-a-dia, comunica-se quase somente com o seu marido, João Pereira, 82, na única língua que conhece, o ofaié, seu idioma nativo. Com ele, relembra a caça e a pesca que lhes asseguravam a sobrevivência no passado, a expulsão de suas terras tradicionais, às margens do rio Paraná, no Mato Grosso do Sul, e o assentamento que só recentemente lhes trouxe alguma paz.
Josilene Martins, 13, não compreende nada do que dizem os vizinhos. Índia ofaié-xavante como Francisca e João, Josilene, no entanto, nunca teve a oportunidade de aprender a fala de seu povo, dominada hoje por apenas 11 dos 68 habitantes da reserva, que fica no município de Brasilândia, a cerca de 400 km de Campo Grande, capital sul-mato-grossense.
Sem registro escrito, o ofaié-xavante é uma das 47 línguas em extinção no Brasil, segundo o "Ethnologue". José de Souza, 30, cacique da reserva e um dos mais jovens índios da comunidade que ainda falam fluentemente a língua, conta que entre 1998 e 2000, ele mesmo, que estudou apenas até a 8ª série, chegou a ensinar informalmente o ofaié às crianças da comunidade. No entanto, diz ele, por sugestão da Secretaria Municipal da Educação de Brasilândia, que mantém ali uma pequena escola, as aulas teriam sido suspensas. O motivo: o ensino de ofaié estaria atrapalhando "a fixação do português".
"A gente ficou muito sentido, porque é uma falta de respeito", queixa-se o cacique. "Antes, tentaram acabar com a gente fisicamente, agora tentam terminar com a nossa cultura."
Secretário municipal da Educação de Brasilândia desde janeiro deste ano, Francisco Aparecido Lins afirma que desconhece a decisão da gestão anterior. E diz que já esteve reunido com o cacique ao menos duas vezes para discutir a possibilidade de incluir, a partir de 2006, o ofaié como disciplina obrigatória no currículo escolar. Desde que "eles se proponham a trabalhar seriamente para aprender", ressalva o secretário.
À espera de uma solução legal para o problema, os ofaié-xavantes vêem sua língua com dias contados.
"É bastante preocupante porque há pelo menos 18 crianças, com idade entre 6 e 14 anos, que gostariam de aprender, mas não têm como. Isso, apesar de a Constituição de 1988 garantir o direito de preservação das tradições indígenas, além do aprendizado do português. Mas, sozinhos, não temos recursos para elaborar livros", lamenta o cacique.
O uso
Na comunidade, o ofaié está presente na vida dos índios desde seu nascimento. Além do nome em português, eles são "batizados" em ofaié. Sempre com palavras ligadas à natureza, escolhidas no momento do parto, pelos mais velhos. O cacique, por exemplo, chama-se Kói em sua língua nativa, palavra que significa "fundo", porque sua mãe o deu à luz num "lugar profundo". Também seus três filhos receberam identidades ofaiés: Ariel, 3, chama-se Kouê ("sabiá", porque havia muitos em volta); Josiele, 7, é Or-te-fô ("menina"), e o mais velho, Josiel, 10, é Xouê ("fumaça", porque ao nascer, segundo o cacique, havia forte cerração na comunidade).
A tradição do "batismo" em ofaié, no entanto, também tem perdido sua força. Neuza da Silva (ou Teng-hô, que significa "algo distante"), 44, não nomeou nenhum de seus seis filhos com palavras de sua língua nativa. E, embora fale, encontra resistência para ensinar aos mais jovens.
"Falar não é tão difícil, mas duro é ensinar sem as letras", lamenta Neuza, cuja expectativa é a elaboração de uma cartilha, missão assumida pela pesquisadora Maria das Dores de Oliveira, da Universidade Federal de Alagoas.
"Tento falar com as crianças, mas elas não entendem, aí tenho que explicar em português. Com a cartilha pode ser que eles se interessem mais", espera Neuza.
O povo e a fala
De acordo com o lingüista Eduardo Ribeiro, 34, do Museu Antropológico de Goiânia, a agregação do nome xavante ao ofaié é um engano etnológico histórico na identificação da tribo. Por muitos anos, o termo foi usado para identificar quaisquer índios nômades que viviam no cerrado, como os xavantes originais, do vizinho Mato Grosso.
O lingüista conta que o ofaié tem grande importância científica porque é a única fala da família de mesmo nome, pertencente ao tronco lingüistico macro-jê, que abriga, entre outros, o apinajé, o caiapó e o próprio xavante. Segundo ele, a primeira documentação da fala foi feita pelo alemão Kurt Unkel, apelidado pelos índios guaranis de "Nimuendaju", no início do século 20.
Entre as peculiaridades da língua, está a variação de gênero para a primeira pessoa do singular, ou seja, há um "eu" masculino e outro feminino.
"Também é interessante observar que o ofaié quase não tem empréstimos do português e poucos sofreram uma adaptação à fonologia da língua, como "cachorro", que virou "catchoro". E mais: os ofaiés falam português com sotaque", aponta.
Ribeiro está nos Estados Unidos, com uma bolsa do Endangered Languages Documentation Programme, desenvolvendo, desde 2003, um projeto que visa a elaboração de material didático para o ensino do ofaié. Ele lamenta que muitas canções, mitos da comunidade e até mesmo segredos como da fabricação de flechas já tenham morrido com os mais velhos. Mas ressalta que o número de falantes, ainda jovens, é proporcionalmente grande, o que aumenta as esperanças de um resgate e preservação da língua para as gerações futuras.
"É surpreendente que eles tenham preservado a língua apesar dos maus bocados que passaram. Temos que tirar o chapéu para os ofaiés", ressalta o lingüista.
Cartilha está a cargo de uma índia
DA REPORTAGEM LOCAL
Doutoranda em lingüística pela Universidade Federal de Alagoas e professora da Funai, Maria das Dores de Oliveira pertence à etnia indígena pancararú (do município de Tacaratú, Pernambuco). Sua tese intitula-se "Descrição de uma Língua Indígena Brasileira" e tem ênfase na fonologia e gramática ofaié, com aplicação dos resultados na educação escolar da etnia. Leia a seguir a entrevista que ela deu à Folha. (ES)
Folha - De que consiste sua pesquisa?
Maria das Dores de Oliveira - Minha pesquisa está orientada para duas perspectivas: uma puramente lingüística, que é verificar como a língua está organizada internamente e descrever tal organização; outra, direcionada para aplicação dos resultados na educação escolar dos ofaiés, com sugestões de escrita da língua.
Folha - Quais são algumas peculiaridades da língua?
Maria das Dores - O ofaié não faz a distinção morfológica entre presente, passado e futuro, como o português, para termos um parâmetro de comparação. Assim, enquanto em português dizemos "eu mato" e "eu matei", em ofaié há apenas uma forma para os dois tempos: "ta oketxi kãj". O falante pode fazer a distinção, mas isso é feito com advérbios e não mudando o verbo.
Folha - Quais as reais chances de sobrevivência do ofaié?
Maria das Dores - Acredito ser possível a revitalização da língua, pois ainda existem falantes e há um conjunto de situações que pode contribuir com seu fortalecimento. Como a atitude mais positiva dos falantes em relação à língua, ou seja, a vontade declarada de que ela seja preservada. Para isso, um caminho é propor meios de fazê-la ser utilizada mais intensamente e colocá-la na escola para que as crianças compreendam que a sua língua tem uma função social na comunidade. Isso não depende somente dos ofaiés. Eles precisam do nosso apoio através da pesquisa lingüística.
Folha - Como o fato da sra. também vir de uma comunidade indígena influencia sua pesquisa?
Maria das Dores - A minha condição étnica sempre pesa nas minhas decisões de atuação. Primeiro porque desde cedo aprendi que se deve lutar contra uma série de situações que tornam o índio invisível socialmente. Então, manter valores socioculturais é fortalecer a identidade e marcar nossa existência enquanto povo distinto. A língua é um símbolo importante de identidade étnica dos ofaiés. Por isso, eles não querem perdê-la.
FSP, 21/08/2005, Ilustrada, p. E5-E6
Maior estudo sobre línguas, "Ethnologue" conta 6.912 idiomas no mundo; 497 estão ameaçados
Pedro Dias Leite
De Nova York
Mais de 860 milhões de chineses falam mandarim. Apenas dois brasileiros, se ainda estiverem vivos, falam apiacá. A lista pode continuar indefinidamente, porque é longa, muito longa, ao menos a julgar pela nova edição do "Ethnologue", o maior compêndio sobre línguas já feito no planeta. De acordo com o livro, são 6.912 línguas em todo o mundo.
O trabalho começou em 1951 como uma espécie de guia, com apenas 40 línguas, para missionários cristãos, e hoje lista quase 7.000 idiomas, quantas pessoas os falam e onde fica essa população. O livro não ensina nenhuma das línguas, apenas cataloga, e é editado de quatro em quatro anos -por problemas tecnológicos, a atual edição levou cinco anos.
Mas essa busca por descobrir todas as línguas do mundo pode estar perto de ser concluída, segundo disse à Folha o editor do livro, Ray Gordon. "Eu suspeito que estejamos próximos de determinar todas as novas línguas. Talvez haja mais 300 ou 400 que ainda não estão identificadas, que se separaram de grupos no Pacífico e na Ásia e que ainda não tivemos pesquisa local suficiente."
No Brasil, o trabalho está praticamente completo: são 188 línguas (o português é de longe a principal), muitas delas faladas por pequenos e isolados grupos indígenas. Existem outras 47 que já foram extintas. O número vem oscilando pouco ao longo dos últimos 20 anos. Em 1982, eram 238 línguas no total, com 30 extintas. Na edição anterior, de 2000, contavam-se 234 línguas, 42 extintas.
O "Ethnologue" considera como línguas diferentes aquelas em que dois povos não conseguem se comunicar se cada um falar a sua. Povoados asiáticos que têm uma origem num dialeto comum, mas com o passar dos tempos não se entendem mais, são considerados povos com línguas diferentes.
"Nos anos recentes, o número de línguas subiu e desceu ao mesmo tempo. Subiu, porque há situações em que algumas línguas se dividiram. E desceu porque, em outras, descobrimos que onde identificamos mais de uma língua, na verdade, falavam a mesma variedade. Então reduzimos o número e classificamos essas linguagens como dialetos", explica o editor, Gordon.
Para chegar às línguas, são utilizadas basicamente três fontes: bibliografia, contatos com lingüistas e antropólogos e trabalho de campo. Na atual edição, cerca de cem pessoas contribuíram diretamente.
No Brasil, o trabalho é feito desde 1950. "Acredito que já cobrimos todas as línguas lá. Ao longo das últimas edições, o número tem sido relativamente estável. Em outras palavras, o número de línguas extintas tem crescido levemente, e nós tivemos mais informações sobre o restante", diz Gordon, cujo estudo tem confiabilidade questionada por especialistas brasileiros.
A tendência é que as línguas em risco de extinção desapareçam no espaço de uma geração. Ao todo, são 497 ameaçadas no mundo, e o Brasil concentra 30 delas. Em algumas, pouquíssimos falam a língua, caso do ofaié, idioma indígena dominado só por 11 pessoas, em Brasilândia (MS).
"Tenho certeza de que, ao longo de cinco anos, algumas delas já devem ter sido extintas. Prevemos que nos próximos 25 anos a maioria dessas [497] línguas tenha sido ou esteja próxima de terem sido extintas", conta.
Ao mesmo tempo em que ajuda a preservar essas línguas por registrar sua existência, o "Ethnologue" é criticado por estudiosos justamente por isso. Como até hoje a empresa que o produz utiliza o livro como base para traduzir a Bíblia para missionários, alguns especialistas afirmam que isso acaba por extinguir esses idiomas.
"É absurdo pensar no SIL [que produz o livro] como uma agência de preservação, quando eles fazem o oposto. Junto ao extermínio da religião nativa, todas as formas cerimoniais de discurso, músicas e arte associadas com a religião desaparecem também", disse ao "New York Times" Denny Moore, um lingüista que trabalha no Estado do Pará há 18 anos.
O SIL (Summer Institute of Linguistics, instituto de verão para lingüística) treina missionários para aprender as línguas locais e traduzir a Bíblia. "Os funcionários do SIL realmente trabalham com isso, mas a proposta do "Ethnologue" é fornecer documentos de referência nas línguas do mundo", diz o editor da atual edição.
Ainda neste ano, o livro deve ser comercializado em larga escala -hoje a obra só está disponível pelo site ethnologue.com, mas a intenção é vendê-la em livrarias.
Compêndio é útil, mas sofre com viés ideológico, dizem lingüistas
DA REPORTAGEM LOCAL
Ambrangente, útil, mas falho. Dois lingüistas ouvidos pela Folha concordam que o "Ethnologue" é o mais amplo estudo do gênero existente, mas apontam deficiências. Para o professor Aryon Rodrigues, 80, da Universidade de Brasília, o catálogo é "o maior inventário de línguas do mundo, o que não se pode desprezar". Mas tem equívocos, como incluir o cafundó como língua, sendo este um código que mistura português e quimbundo, idioma africano, em comunidades quilombolas remanescentes.
O lingüista Eduardo Ribeiro lembra que, até a edição anterior do "Ethnologue", o ofaié era listado como fala já extinta.
"Isto porque a lingüista Sarah Gudschinsky esteve lá nos anos 50 e achou que havia entrevistado o último falante de ofaié", conta.
Segundo Ribeiro, outra língua indígena brasileira, o caingangue, do interior de São Paulo, também é dada como extinta, embora não esteja. Para ele, o "Ethnologue" sofre com a falta de diálogo com a comunidade acadêmica local, e, sobretudo, com o viés ideológico.
"A maioria dos lingüistas da América do Sul acha que não é uma fonte confiável pois se trata justamente de uma instituição de missionários, que não está interessada na diversidade cultural, mas sim em que todos tenham uma mesma crença. E os ritos religiosos estão intimamente ligados às falas", diz Ribeiro. (ES)
Uma língua em extinção
Em Brasilândia (MS), 11 pessoas são as únicas no mundo que falam ofaié, idioma prestes a acabar
Eduardo Simões
A brasileira Francisca da Silva, 92, não fala nem entende o português. No dia-a-dia, comunica-se quase somente com o seu marido, João Pereira, 82, na única língua que conhece, o ofaié, seu idioma nativo. Com ele, relembra a caça e a pesca que lhes asseguravam a sobrevivência no passado, a expulsão de suas terras tradicionais, às margens do rio Paraná, no Mato Grosso do Sul, e o assentamento que só recentemente lhes trouxe alguma paz.
Josilene Martins, 13, não compreende nada do que dizem os vizinhos. Índia ofaié-xavante como Francisca e João, Josilene, no entanto, nunca teve a oportunidade de aprender a fala de seu povo, dominada hoje por apenas 11 dos 68 habitantes da reserva, que fica no município de Brasilândia, a cerca de 400 km de Campo Grande, capital sul-mato-grossense.
Sem registro escrito, o ofaié-xavante é uma das 47 línguas em extinção no Brasil, segundo o "Ethnologue". José de Souza, 30, cacique da reserva e um dos mais jovens índios da comunidade que ainda falam fluentemente a língua, conta que entre 1998 e 2000, ele mesmo, que estudou apenas até a 8ª série, chegou a ensinar informalmente o ofaié às crianças da comunidade. No entanto, diz ele, por sugestão da Secretaria Municipal da Educação de Brasilândia, que mantém ali uma pequena escola, as aulas teriam sido suspensas. O motivo: o ensino de ofaié estaria atrapalhando "a fixação do português".
"A gente ficou muito sentido, porque é uma falta de respeito", queixa-se o cacique. "Antes, tentaram acabar com a gente fisicamente, agora tentam terminar com a nossa cultura."
Secretário municipal da Educação de Brasilândia desde janeiro deste ano, Francisco Aparecido Lins afirma que desconhece a decisão da gestão anterior. E diz que já esteve reunido com o cacique ao menos duas vezes para discutir a possibilidade de incluir, a partir de 2006, o ofaié como disciplina obrigatória no currículo escolar. Desde que "eles se proponham a trabalhar seriamente para aprender", ressalva o secretário.
À espera de uma solução legal para o problema, os ofaié-xavantes vêem sua língua com dias contados.
"É bastante preocupante porque há pelo menos 18 crianças, com idade entre 6 e 14 anos, que gostariam de aprender, mas não têm como. Isso, apesar de a Constituição de 1988 garantir o direito de preservação das tradições indígenas, além do aprendizado do português. Mas, sozinhos, não temos recursos para elaborar livros", lamenta o cacique.
O uso
Na comunidade, o ofaié está presente na vida dos índios desde seu nascimento. Além do nome em português, eles são "batizados" em ofaié. Sempre com palavras ligadas à natureza, escolhidas no momento do parto, pelos mais velhos. O cacique, por exemplo, chama-se Kói em sua língua nativa, palavra que significa "fundo", porque sua mãe o deu à luz num "lugar profundo". Também seus três filhos receberam identidades ofaiés: Ariel, 3, chama-se Kouê ("sabiá", porque havia muitos em volta); Josiele, 7, é Or-te-fô ("menina"), e o mais velho, Josiel, 10, é Xouê ("fumaça", porque ao nascer, segundo o cacique, havia forte cerração na comunidade).
A tradição do "batismo" em ofaié, no entanto, também tem perdido sua força. Neuza da Silva (ou Teng-hô, que significa "algo distante"), 44, não nomeou nenhum de seus seis filhos com palavras de sua língua nativa. E, embora fale, encontra resistência para ensinar aos mais jovens.
"Falar não é tão difícil, mas duro é ensinar sem as letras", lamenta Neuza, cuja expectativa é a elaboração de uma cartilha, missão assumida pela pesquisadora Maria das Dores de Oliveira, da Universidade Federal de Alagoas.
"Tento falar com as crianças, mas elas não entendem, aí tenho que explicar em português. Com a cartilha pode ser que eles se interessem mais", espera Neuza.
O povo e a fala
De acordo com o lingüista Eduardo Ribeiro, 34, do Museu Antropológico de Goiânia, a agregação do nome xavante ao ofaié é um engano etnológico histórico na identificação da tribo. Por muitos anos, o termo foi usado para identificar quaisquer índios nômades que viviam no cerrado, como os xavantes originais, do vizinho Mato Grosso.
O lingüista conta que o ofaié tem grande importância científica porque é a única fala da família de mesmo nome, pertencente ao tronco lingüistico macro-jê, que abriga, entre outros, o apinajé, o caiapó e o próprio xavante. Segundo ele, a primeira documentação da fala foi feita pelo alemão Kurt Unkel, apelidado pelos índios guaranis de "Nimuendaju", no início do século 20.
Entre as peculiaridades da língua, está a variação de gênero para a primeira pessoa do singular, ou seja, há um "eu" masculino e outro feminino.
"Também é interessante observar que o ofaié quase não tem empréstimos do português e poucos sofreram uma adaptação à fonologia da língua, como "cachorro", que virou "catchoro". E mais: os ofaiés falam português com sotaque", aponta.
Ribeiro está nos Estados Unidos, com uma bolsa do Endangered Languages Documentation Programme, desenvolvendo, desde 2003, um projeto que visa a elaboração de material didático para o ensino do ofaié. Ele lamenta que muitas canções, mitos da comunidade e até mesmo segredos como da fabricação de flechas já tenham morrido com os mais velhos. Mas ressalta que o número de falantes, ainda jovens, é proporcionalmente grande, o que aumenta as esperanças de um resgate e preservação da língua para as gerações futuras.
"É surpreendente que eles tenham preservado a língua apesar dos maus bocados que passaram. Temos que tirar o chapéu para os ofaiés", ressalta o lingüista.
Cartilha está a cargo de uma índia
DA REPORTAGEM LOCAL
Doutoranda em lingüística pela Universidade Federal de Alagoas e professora da Funai, Maria das Dores de Oliveira pertence à etnia indígena pancararú (do município de Tacaratú, Pernambuco). Sua tese intitula-se "Descrição de uma Língua Indígena Brasileira" e tem ênfase na fonologia e gramática ofaié, com aplicação dos resultados na educação escolar da etnia. Leia a seguir a entrevista que ela deu à Folha. (ES)
Folha - De que consiste sua pesquisa?
Maria das Dores de Oliveira - Minha pesquisa está orientada para duas perspectivas: uma puramente lingüística, que é verificar como a língua está organizada internamente e descrever tal organização; outra, direcionada para aplicação dos resultados na educação escolar dos ofaiés, com sugestões de escrita da língua.
Folha - Quais são algumas peculiaridades da língua?
Maria das Dores - O ofaié não faz a distinção morfológica entre presente, passado e futuro, como o português, para termos um parâmetro de comparação. Assim, enquanto em português dizemos "eu mato" e "eu matei", em ofaié há apenas uma forma para os dois tempos: "ta oketxi kãj". O falante pode fazer a distinção, mas isso é feito com advérbios e não mudando o verbo.
Folha - Quais as reais chances de sobrevivência do ofaié?
Maria das Dores - Acredito ser possível a revitalização da língua, pois ainda existem falantes e há um conjunto de situações que pode contribuir com seu fortalecimento. Como a atitude mais positiva dos falantes em relação à língua, ou seja, a vontade declarada de que ela seja preservada. Para isso, um caminho é propor meios de fazê-la ser utilizada mais intensamente e colocá-la na escola para que as crianças compreendam que a sua língua tem uma função social na comunidade. Isso não depende somente dos ofaiés. Eles precisam do nosso apoio através da pesquisa lingüística.
Folha - Como o fato da sra. também vir de uma comunidade indígena influencia sua pesquisa?
Maria das Dores - A minha condição étnica sempre pesa nas minhas decisões de atuação. Primeiro porque desde cedo aprendi que se deve lutar contra uma série de situações que tornam o índio invisível socialmente. Então, manter valores socioculturais é fortalecer a identidade e marcar nossa existência enquanto povo distinto. A língua é um símbolo importante de identidade étnica dos ofaiés. Por isso, eles não querem perdê-la.
FSP, 21/08/2005, Ilustrada, p. E5-E6
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