De Povos Indígenas no Brasil
Notícias
Centro indígena será motivo de discussão
14/01/2002
Autor: CABRAL, Jecinaldo Barbosa
Fonte: A Crítica (Manaus - AM)
Documentos anexos
Na última semana, o Governo do Amazonas tornou pública sua proposta para a criação do Centro de Estudos Superiores Indígenas (Cesi), uma das futuras unidades da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), recém-criada. Nos bastidores, o projeto é um dos assuntos mais comentados, de um lado por ser essa uma das antigas reivindicações das organizações indígenas e, de outro, pela desconfiança de a proposta vir embrulhada com apelos eleitorais, e, nessa condição, não tenha fôlego para ir além de uma campanha em busca de votos. É dentro desse cenário que as lideranças indígenas vão receber nos próximos dias a versão original do Cesi e terão, até o mês de abril, uma série de encontros para se posicionar sobre o que está sendo proposto. "Só vamos dizer sim ao projeto depois de as lideranças se manifestarem e concordarem com ele", avisa o presidente do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena, Jecinaldo Barbosa Cabral, 23, da etnia sateré-mawê, e um dos responsáveis pela elaboração das linhas gerais do centro. Professor nas aldeias saterés desde os 18 anos, Jecinaldo é aluno de Pedagogia da Universidade do Amazonas, mas está com a matrícula trancada desde que foi indicado pelas lideranças indígenas (há sete meses) para presidir o conselho. Cabe a esse jovem a responsabilidade de conduzir o processo de debate e das decisões que deverão ser tomadas quanto à constituição da "universidade indígena". "Sabemos dos riscos que corremos, mas o movimento indígena vai insistir em formalizar parcerias responsáveis na área da educação, algo que nos é muito caro", diz Jecinaldo Cabral. Em entrevista A CRÍTICA, Jecinaldo diz que existem cerca de 600 índios, no Amazonas, aptos a ingressar no terceiro grau.
A CRÍTICA - A educação tem sido tema de preocupação do movimento indígena e a criação de uma "universidade indígena" é sonho antigo. Como o Conselho de Professores Indígenas da Amazônia vê a criação do Cesi?
Jecinaldo Barbosa Cabral - O Copiam foi criado em 1994, mas hoje está um pouco fragilizado. Estamos discutindo com a direção da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o fortalecimento dele e este seja um ano decisivo nessa área. Quanto ao modelo de educação, nós, índios, estamos construindo o que consideramos melhor e ainda nos encontramos numa fase inicial. Antes, tínhamos um modelo imposto e, agora, somos nós mesmos escrevendo a nossa história. As diretrizes serão dadas a partir das lideranças e das comunidades.
AC - O que muda no modelo?
JBC - São mudanças na condução e no entendimento do processo e, por isso, muito delicadas. Veja a região do rio Negro, que tem forma diferente da do Baixo Amazonas. É preciso pois que essa diferença seja respeitada, não se pode continuar generalizando como se fôssemos todos a mesma coisa. A causa é uma: a educação. Mas as especificidades são muitas. De outro lado, o Amazonas, por seu tamanho, é um desafio para nós, por isso precisamos formar parcerias responsáveis, capazes de nos ajudar a concretizar o projeto que queremos nesse segmento. Hoje entendemos ser o momento de fazer acontecer as conquistas de lideranças anteriores que garantiram na Constituição Federal, na LDB, em tantos outros documentos o direito de termos educação diferenciada.
AC - Como professor e aluno indígena, o que é mais nocivo nas experiências educacionais com povos indígenas?
JBC - A imposição de modelos. A forma tradicional usada pela sociedade envolvente foi tão desastrosa aos povos indígenas que muitos deixaram de falar a língua materna. É por isso que o projeto do Centro de Estudos Superiores Indígenas deve ser tratado com o máximo de cuidado, a fim de que não seja imposto e não nos isole. Queremos nossa cultura de volta, nossa história, nossas lendas, é isso que nos faz ser sateré, ticuna, tucano, porém não queremos o isolamento e sim o diálogo, o conhecimento desse outro mundo com o qual nos relacionamos.
AC - Neste aspecto, como os senhores recebem a proposta do Governo Estadual para a criação do Cesi?
JBC - Temos consciência de que precisamos formar pessoas para atuar nas bases como agentes mobilizadores das comunidades indígenas na questão da educação. Estamos diante de um quadro em que a maioria dos professores indígenas cursou até o ensino fundamental e com o agravante de que o modelo era algo de fora para dentro, com uma série de problemas. Essas pessoas estão nas aldeias, estão professores, mas não são professores porque lhes falta a formação exigida para ser professor. De outro lado, há demanda de alunos e uma grande reivindicação das comunidades indígenas no sentido de se implantar o ensino médio. Grande parte dos saterés que está em Parintins foi para lá, em parte, em busca de oportunidades de ampliar seus estudos e isso ocorre em outras regiões. Então, estamos diante de um impasse: como implantar o ensino médio se não temos professores preparados? Em pouco dias teremos cerca de 600 índios aptos a ingressar no terceiro grau e onde vão estudar? Não há espaço para eles.
AC - Significa que o conselho que o senhor preside apóia a criação do centro dentro da proposta que está sendo formalizada pelo Governo?
JBC - Eu, enquanto presidente do conselho, tenho tido participação ativa na elaboração da proposta do Cesi. Porém, somente agora, com o documento pronto, é que as bases vão poder se posicionar, discutir, decidir. Vários encontros vão acontecer, de agora até abril, envolvendo todas as lideranças, para tratar desse projeto. Em abril vamos nos reunir para dizer oficialmente qual será a nossa posição quanto ao projeto, o que vamos alterar, o que vamos manter.
AC - Os senhores trabalham com qual perspectiva de tempo em relação ao funcionamento do Cesi?
JBC - Essa é uma experiência única. Até então sabíamos de cursos funcionando em universidades, como na Universidade Federal do Mato Grosso, então entendemos que precisamos começar a fazer e adequar a proposta ao longo dos anos. Nesse sentido, esperamos que na metade do segundo semestre deste ano o centro esteja funcionando. Vai iniciar em São Gabriel da Cachoeira, região do Alto Rio Negro, não apenas pela concentração indígena ali existente, mas também por ter maior demanda de alunos. Temos um projeto com a Secretaria Estadual de Educação para o repasse de cem computadores às comunidades indígenas, principalmente àquelas que estejam situadas nos futuros núcleos do Cesi. Em relação a esse projeto, entendemos que devemos ser ousados, sem ser radical.
AC - Como os senhores trabalham com a porção político-eleitoreira para que esta não contamine a proposta?
JBC - Fazemos parte da escola que é o movimento indígena. Estamos à frente de uma entidade que representa a educação indígena e muito próximo do Governo Estadual. Isso está claro para nós, como o é o fato de ao longo dos anos termos enfrentado o distanciamento, a impossibilidade do diálogo, mas por resistência dos governos. A luta das nossas lideranças nas décadas de 70 e 80 nos abriu novos espaços, garantidos pela Constituição de 1988 e não vamos abrir mão deles. O governo é responsável pela implementação de políticas públicas, tem o dever de fazer e o recurso financeiro para executar, e nós queremos participar, apresentar a nossa demanda e vê-la respeitada...
AC - E o governo está respeitando?
JBC - Estamos às vésperas de grandes eleições, é um momento tumultuado, mas para mim independente qual o governo que executará a proposta, queremos é que ela seja feita, seguindo as diretrizes formuladas pelas lideranças indígenas, pela nossa base. Já fomos enganados muitas vezes, por símbolos, decretos, cartas de intenções e muito barulho na mídia e não sai nada. A nós interessa a nossa causa e é por ela que vamos lutar. Se o Cesi for uma brincadeira ou mídia para o Governo Estadual, muitos serão prejudicados e, nós, do movimento indígena, desmoralizados, por isso, estamos cuidando para ouvir ao máximo as bases e fechar compromissos responsáveis. Temos consciência do risco que vamos enfrentar.
AC - Os jovens indígenas da Amazônia estão preocupados com o resgate de suas culturas ou esse é um sentimento dos mais velhos?
JBC - Apesar do bombardeio de informações, de escolas que ensinam a negar a nossa identidade, há indícios de que as nossas culturas estão sendo buscadas por nós mesmos. Eu, quando cheguei à cidade, adolescente, não dizia que era sateré, tinha vergonha, medo da reação das pessoas e, aí, vejo a educação indígena como arma principal nessa luta para resgatarmos, enquanto povos, o orgulho de ser índio, de ter a cara que temos, das nossas lendas e histórias, dos nossos costumes. Se não investirmos nos jovens para recompor essa cultura estaremos cometendo retrocessos muito graves.
AC - A rejeição ao índio ainda é muito forte?
JBC - Apesar de o movimento indígena ter avançado bastante, das conquistas feitas, de sermos e estarmos na Amazônia, o preconceito é muito grande, inclusive há discriminação entre os índios, dos índios que se identificam como índios e daqueles que são misturados, porém na sua formação maior são índios. Minha experiência na cidade me colocou diante do que é sentir-se só em meio de uma multidão para a qual você é diferente, inferior, incapaz. Ter forças em meio a essa guerra e dizer eu sou índio é muito difícil. Não fomos preparados para batalhas nesse plano, nossa barreira de defesa revela-se muito fraca diante da força do preconceito. É um outro modelo de educação de índios e dos não índios que poderá alterar essa realidade. Os livros nas escolas ainda nos retratam como se vivêssemos no século 19 ou no início dos anos 20. Isso é grave, alimenta a intolerância e o preconceito.
A CRÍTICA - A educação tem sido tema de preocupação do movimento indígena e a criação de uma "universidade indígena" é sonho antigo. Como o Conselho de Professores Indígenas da Amazônia vê a criação do Cesi?
Jecinaldo Barbosa Cabral - O Copiam foi criado em 1994, mas hoje está um pouco fragilizado. Estamos discutindo com a direção da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o fortalecimento dele e este seja um ano decisivo nessa área. Quanto ao modelo de educação, nós, índios, estamos construindo o que consideramos melhor e ainda nos encontramos numa fase inicial. Antes, tínhamos um modelo imposto e, agora, somos nós mesmos escrevendo a nossa história. As diretrizes serão dadas a partir das lideranças e das comunidades.
AC - O que muda no modelo?
JBC - São mudanças na condução e no entendimento do processo e, por isso, muito delicadas. Veja a região do rio Negro, que tem forma diferente da do Baixo Amazonas. É preciso pois que essa diferença seja respeitada, não se pode continuar generalizando como se fôssemos todos a mesma coisa. A causa é uma: a educação. Mas as especificidades são muitas. De outro lado, o Amazonas, por seu tamanho, é um desafio para nós, por isso precisamos formar parcerias responsáveis, capazes de nos ajudar a concretizar o projeto que queremos nesse segmento. Hoje entendemos ser o momento de fazer acontecer as conquistas de lideranças anteriores que garantiram na Constituição Federal, na LDB, em tantos outros documentos o direito de termos educação diferenciada.
AC - Como professor e aluno indígena, o que é mais nocivo nas experiências educacionais com povos indígenas?
JBC - A imposição de modelos. A forma tradicional usada pela sociedade envolvente foi tão desastrosa aos povos indígenas que muitos deixaram de falar a língua materna. É por isso que o projeto do Centro de Estudos Superiores Indígenas deve ser tratado com o máximo de cuidado, a fim de que não seja imposto e não nos isole. Queremos nossa cultura de volta, nossa história, nossas lendas, é isso que nos faz ser sateré, ticuna, tucano, porém não queremos o isolamento e sim o diálogo, o conhecimento desse outro mundo com o qual nos relacionamos.
AC - Neste aspecto, como os senhores recebem a proposta do Governo Estadual para a criação do Cesi?
JBC - Temos consciência de que precisamos formar pessoas para atuar nas bases como agentes mobilizadores das comunidades indígenas na questão da educação. Estamos diante de um quadro em que a maioria dos professores indígenas cursou até o ensino fundamental e com o agravante de que o modelo era algo de fora para dentro, com uma série de problemas. Essas pessoas estão nas aldeias, estão professores, mas não são professores porque lhes falta a formação exigida para ser professor. De outro lado, há demanda de alunos e uma grande reivindicação das comunidades indígenas no sentido de se implantar o ensino médio. Grande parte dos saterés que está em Parintins foi para lá, em parte, em busca de oportunidades de ampliar seus estudos e isso ocorre em outras regiões. Então, estamos diante de um impasse: como implantar o ensino médio se não temos professores preparados? Em pouco dias teremos cerca de 600 índios aptos a ingressar no terceiro grau e onde vão estudar? Não há espaço para eles.
AC - Significa que o conselho que o senhor preside apóia a criação do centro dentro da proposta que está sendo formalizada pelo Governo?
JBC - Eu, enquanto presidente do conselho, tenho tido participação ativa na elaboração da proposta do Cesi. Porém, somente agora, com o documento pronto, é que as bases vão poder se posicionar, discutir, decidir. Vários encontros vão acontecer, de agora até abril, envolvendo todas as lideranças, para tratar desse projeto. Em abril vamos nos reunir para dizer oficialmente qual será a nossa posição quanto ao projeto, o que vamos alterar, o que vamos manter.
AC - Os senhores trabalham com qual perspectiva de tempo em relação ao funcionamento do Cesi?
JBC - Essa é uma experiência única. Até então sabíamos de cursos funcionando em universidades, como na Universidade Federal do Mato Grosso, então entendemos que precisamos começar a fazer e adequar a proposta ao longo dos anos. Nesse sentido, esperamos que na metade do segundo semestre deste ano o centro esteja funcionando. Vai iniciar em São Gabriel da Cachoeira, região do Alto Rio Negro, não apenas pela concentração indígena ali existente, mas também por ter maior demanda de alunos. Temos um projeto com a Secretaria Estadual de Educação para o repasse de cem computadores às comunidades indígenas, principalmente àquelas que estejam situadas nos futuros núcleos do Cesi. Em relação a esse projeto, entendemos que devemos ser ousados, sem ser radical.
AC - Como os senhores trabalham com a porção político-eleitoreira para que esta não contamine a proposta?
JBC - Fazemos parte da escola que é o movimento indígena. Estamos à frente de uma entidade que representa a educação indígena e muito próximo do Governo Estadual. Isso está claro para nós, como o é o fato de ao longo dos anos termos enfrentado o distanciamento, a impossibilidade do diálogo, mas por resistência dos governos. A luta das nossas lideranças nas décadas de 70 e 80 nos abriu novos espaços, garantidos pela Constituição de 1988 e não vamos abrir mão deles. O governo é responsável pela implementação de políticas públicas, tem o dever de fazer e o recurso financeiro para executar, e nós queremos participar, apresentar a nossa demanda e vê-la respeitada...
AC - E o governo está respeitando?
JBC - Estamos às vésperas de grandes eleições, é um momento tumultuado, mas para mim independente qual o governo que executará a proposta, queremos é que ela seja feita, seguindo as diretrizes formuladas pelas lideranças indígenas, pela nossa base. Já fomos enganados muitas vezes, por símbolos, decretos, cartas de intenções e muito barulho na mídia e não sai nada. A nós interessa a nossa causa e é por ela que vamos lutar. Se o Cesi for uma brincadeira ou mídia para o Governo Estadual, muitos serão prejudicados e, nós, do movimento indígena, desmoralizados, por isso, estamos cuidando para ouvir ao máximo as bases e fechar compromissos responsáveis. Temos consciência do risco que vamos enfrentar.
AC - Os jovens indígenas da Amazônia estão preocupados com o resgate de suas culturas ou esse é um sentimento dos mais velhos?
JBC - Apesar do bombardeio de informações, de escolas que ensinam a negar a nossa identidade, há indícios de que as nossas culturas estão sendo buscadas por nós mesmos. Eu, quando cheguei à cidade, adolescente, não dizia que era sateré, tinha vergonha, medo da reação das pessoas e, aí, vejo a educação indígena como arma principal nessa luta para resgatarmos, enquanto povos, o orgulho de ser índio, de ter a cara que temos, das nossas lendas e histórias, dos nossos costumes. Se não investirmos nos jovens para recompor essa cultura estaremos cometendo retrocessos muito graves.
AC - A rejeição ao índio ainda é muito forte?
JBC - Apesar de o movimento indígena ter avançado bastante, das conquistas feitas, de sermos e estarmos na Amazônia, o preconceito é muito grande, inclusive há discriminação entre os índios, dos índios que se identificam como índios e daqueles que são misturados, porém na sua formação maior são índios. Minha experiência na cidade me colocou diante do que é sentir-se só em meio de uma multidão para a qual você é diferente, inferior, incapaz. Ter forças em meio a essa guerra e dizer eu sou índio é muito difícil. Não fomos preparados para batalhas nesse plano, nossa barreira de defesa revela-se muito fraca diante da força do preconceito. É um outro modelo de educação de índios e dos não índios que poderá alterar essa realidade. Os livros nas escolas ainda nos retratam como se vivêssemos no século 19 ou no início dos anos 20. Isso é grave, alimenta a intolerância e o preconceito.
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