De Povos Indígenas no Brasil

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Dois assuntos sérios num só

17/03/2009

Autor: PASSARINHO, Jarbas

Fonte: CB, Opinião, p. 19



Dois assuntos sérios num só

Jarbas Passarinho

A volta ao Brasil, em viagem ecológica, do príncipe Charles, herdeiro da coroa britânica, acompanhado da esposa, a duquesa de Cornuália, e uma defesa do ex-presidente da República José Sarney, hoje presidente do Congresso Nacional, quanto à demarcação da terra indígena ianomâmi, fazem-me pedir um aparte. A missão do príncipe britânico e as palavras do presidente do Poder Legislativo precisam ser analisadas segundo a moldura de seu tempo. Dos anos 1990 para cá, tivemos decisões que, ainda não emendando o artigo 231 da Constituição, alteraram significativamente os dados de raciocínio: a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, resolução da ONU, com o apoio inédito do Brasil, o abuso das ONGs, apropriando-se da maior riqueza da Amazônia, que é a biodiversidade, e a conclusão do Supremo sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol, demarcada espontaneamente pelo presidente Lula.

Sua Alteza, o príncipe, já esteve aqui há poucos anos. Como sempre, muito cordial, tentou dançar com famosa passista de escola de samba (à época) e aportou seu iate no cais de Belém do Pará, creio que para defender a cessão do desmatamento da Floresta Amazônica. Não porque cometesse o erro crasso de queixar-se de estarmos afetando o pulmão do mundo. Sabia que é soma zero o balanço do oxigênio e de dióxido de carbono produzido pela mata amazônica. Altamente informado, temia, e continua temendo, que, mais que as queimadas, o desmatamento progressivo da floresta contribua para permitir a passagem da radiação solar e evitar a liberação da radiação infravermelha emitida pela Terra.

Daí o efeito estufa, que pode ter consequências trágicas, como a elevação do nível do mar, o que fará desaparecerem as cidades à beira dos oceanos. Esse assunto, diferentemente dos anos 1990, quando cientistas de renome negavam o efeito estufa, já hoje é consenso. É altamente louvável o apoio do príncipe Charles ao Fundo de Desenvolvimento Limpo (Clean Development Mechanism), MDL no Brasil, formado pela contribuição dos países desenvolvidos que não possam cumprir suas metas de redução de emissão de gases de estufa, compensados por projeto de países em desenvolvimento. É o mercado de carbono, funcionando desde 2005.

Quando presidente da República, o senador José Sarney criou o Programa Nossa Natureza, mais completo estudo do meio ambiente brasileiro, concluindo que da colonização até 1988 já devíamos ter desflorestado 5% da hileia amazônica. Em 1989, numa Comissão de Inquérito no Senado, concluímos que o desmatamento já era de 7%, somados os ocorridos antes, no Pará e Maranhão, este pela construção da rodovia Belém-Brasília.

Pouco depois, o presidente Collor convidou-me para assumir o Ministério da Justiça, ao qual a Funai é subordinada. Dois dias após minha posse, a Funai me trouxe um processo contendo despacho do meritíssimo juiz da 7ª Vara Federal de Brasília a cumprir. A origem estava precisamente nos 19 decretos editados pelo então presidente Sarney, no último dos cinco anos de seu profícuo governo. Revogava, acertadamente quanto à demarcação em linha contínua, portaria da Funai, em janeiro de 1985, no governo João Figueiredo, sendo seu ministro o saudoso Mário Andreazza, a quem a Funai era subordinada, interditando a área de 9.419.108 hectares para demarcação e proibindo a presença nela de não-índios, o que não foi observado pelos garimpeiros.

Há dias, li, na internet, uma patriótica declaração do senador Sarney, dizendo que defendeu a pátria quando editou esses decretos, anulando a demarcação em linha contínua e reduzindo a área ianomâmi para 2.435.215, mas "o governo que o sucedeu (Fernando Collor) revogou os decretos". Aqui é que peço um aparte ao amigo de tantos anos. O governo Collor não anulou os decretos citados. Quem o fez foi uma sentença judicial, dando provimento a recurso do Ministério Público. No governo João Figueiredo, em 18 de fevereiro de 1985, sendo ministro o saudoso Mário Andreazza, foi interditada a área maior que 9 milhões de hectares para vir a ser demarcada como terra ianomâmi em linha contínua.

Discordando dos decretos do presidente Sarney que revogavam decisão tomada no governo João Figueiredo, os promotores Deborah de Brito Pereira e Eugênio de Aragão, do Ministério Público, impetraram medida cautelar junto à 7ª Vara Federal de Brasília. Concedida a liminar, o meritíssimo juiz Novelly Júnior ouviu o governo Sarney. Não acatando suas razões, que sustentavam ser o ato da alçada exclusiva do Poder Executivo, o magistrado deu provimento à medida cautelar, o que equivaleu a restabelecer a decisão de janeiro de 1985, do governo João Figueiredo.

Após consulta a ministros e governadores e ao consultor-geral, a ver se a soberania nacional estaria afetada com a demarcação em linha contínua que abrangia a fronteira morta com a Venezuela - e me convencendo de que não - cumpri a sentença. Baixei portaria que foi homologada pelo presidente Collor. Ademais, embora a sentença fosse de primeira instância, dela só poderia recorrer à instância superior o governo Sarney, parte vencida no processo, mas não o fez, atribulado provavelmente pelas eleições iminentes em 1990. O governo Collor, não sendo parte na disputa, não poderia recorrer.
Foi ministro de Estado, governador e senador

CB, 17/03/2009, Opinião, p. 19
 

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